terça-feira, 29 de abril de 2008

Mais um PS.

Era só mais um café da manhã. Olhando pela janela o dia estava absurdamente convencional. O sol não ardia e as nuvens não eram abundantes. Era um dia, feito pra ser mais um dia. Se tudo fosse tão meticuloso quanto ela calculava, naquele dia ninguém havia nascido, morrido, casado, ou sequer feito sexo, descoberto um país, visto o mar pela primeira vez, andado de avião, capturado uma bolha de sabão por mais de dois minutos, ou qualquer grande feito como esses. Era com a maior das certezas, o dia mais convencional de todos os dias convencionais dos trezentos e sessenta e seis daquele ano bissexto. E nem por ser bissexto aquele dia se tornara especial. E naquele dia, ela acordou, na mesma hora de sempre pra fazer o mesmo de sempre. Tateou a cama, tirou a venda com essência de Mate dos olhos, e percebeu que ele não tava ao seu lado, como sempre estivera. Estranhou, mas como todo dia convencional, suas anormalidades eram absolutamente normais e faziam parte daquele entorno suspenso de rotina.
Levantou, pôs os chinelos e foi para o banheiro de sua suíte. Olhando praqueles azulejos ela lembrou de como finalmente eles estavam começando a se mostrar desgastados. E sorriu um pouquinho. Há cinco meses atrás eles haviam decidido tomar esse rumo, dar esse passo e tornar daquele eterno namoro, algo que eles pudesse palpar, sentir e confiar. Mostrando a todos, inclusive aos mesmos que sobreviveram ao colegial e mesmo as ditas tentações universitárias não os tinham desviado a atenção. Ela tinha 23 anos, e ele 24. Ela fazia ciência da computação e ele letras. Ela preferia banana da terra, ele aipim. Ela era de aquário e ele libra, ela era Atlético e ele nem jogava futebol. Ela gostava mais de outono, Itália, azul e Fellini, ele preferia inverno, Maranhão, vermelho e Bruce Lee. Mas ao mesmo tempo, as pessoas tinham um estranhíssimo costume de dizer que eles eram absolutamente idênticos, parecidos e que se não fossem amantes, seriam irmãos. Os dois sempre riram disso, ainda mais quando brigavam.
Se conheceram aos 13 e 14 na escola. Não se falavam até os 16 e 16, quando um dia, foram forçado pelo acaso a descobrirem finalmente que existiam. Tudo por conta de um rumor acerca de uma prova roubada. Destino mais romântico não seria possível. Ela achava ele ordinário, e ele a achava introspectiva. Foram mais quatro meses desde o primeiro contato, até que o Destino foi forçado a agir novamente. E dessa vez foi certeiro. Só não foi muito purista; envolveu etanol, aguardente, estômago vazio e uma formatura falida. Mas aí, ah, mas aí os dois tomaram as cordas disso, e assim ficaram até que, em uma noite de primavera, lá pra outubro, ele sugeriu a mudança, acuado, temendo que ela e sua razão inquebrável fossem questionar. Mas, não foi isso que aconteceu. E segundo relatos dos que ainda quiseram permanecer no restaurante em que eles estavam, qualquer grito acima dos decibéis permitidos até as 22h em prédios residências, era eufemismo.
E no verão daquele mesmo ano eles alugaram um quarto-e-sala afastado do Centro, em um prédio de quatro andares sem escadas. Era tudo tão perfeito. Pra ela era como brincar de casinha, pra ele era a certeza de que ele teria ela pra sempre. Os dois estavam tão felizes.
Estavam não, ela ainda estava, e foi nisso que pensou quando terminou de escovar os dentes e foi para a sala-cozinha-varanda-recepção dos dois, em que ele se encontrava sentado na mesa de dois que ficava simetricamente postada próxima a janela. Seu rosto estava escondido atrás do jornal do dia, o qual ela sabia, mesmo sem olhar que ele estava lendo o caderno de anúncios antes de tudo. Ele gostava disso, ver o que as pessoas colocavam a venda, ria das dentaduras, coleções de fronhas e discografias sertanejas. Era quase como uma válvula matinal de ânimo. E todos os dias ela separava o jornal assim, pra que ele achasse mais fácil. Mas dessa vez foi ele quem colocou próximo à cadeira dela o de Economia no topo. Mas isso era apenas uma pequena mudança, ela jamais admitiria que aquele dia, justo o dia que ela havia escolhido para ser habitual, havia tido algum revertério. Não, foi somente uma gentileza.
Antes de qualquer coisa, deu-lhe um beijo e sentou-se. Ele baixou o jornal, e olhou pra ela com ternura. Começou a falar algo que ela havia parado de prestar atenção no instante em que ele baixou o folhetim. Seus olhos estavam fixos nos olhos dele. Ah, permaneciam os mesmos. Há dez anos. Ou menos, ou mais. Era o mesmo, firme, ávido, agitado e cheio de vida. Corou de pensar que estivesse poetizando olhos, quanto clichê pras 8h. Mas, sua atenção se desviou rapidamente pra sua face como um todo, quando ele sorriu ao ler algum daqueles anúncios. Aquele sorriso, aquele riso. O mesmo, o que ela se apaixonou, o que tornava seus dias revestidos de contornos em Pilot preto 2.0. Ela seria capaz de tudo pra não deixar aquela instituição ruir. Pra não tirar aquele sorriso e nem aquele brilho. Ela havia sido feita pra que ele pudesse amá-la. E tudo que ela queria, era fazer dele, o homem mais feliz do mundo. É o que ela amava, sempre.
Seu estômago revirou ao pensar pela primeira vez no sentido da palavra sempre. Gelou. E colocando uma outra palavrinha ainda menor; ‘pra’ na frente, fez com que ela gelasse ainda mais. Tomou a expressão como um todo, fez como seus sistemas e cálculos universitários e pôs junto a ele. O ‘pra sempre’ e aquele sorriso.
Nunca fizera tanto sentido. Fazia todo o sentido do mundo. Passou margarina na torrada, abriu o jornal, checou a taxa de queda da bolsa enquanto pensava na caixinha preta 3x3 cm com a marca do ourives que havia visto na gaveta da pasta de dente. E sozinha, cá com suas torradas ensaiou alguns tons agudos de ‘SIM’ que poderia dar naquela noite.
Mas, era só mais um café da manhã...

Um comentário:

Anônimo disse...

ano bissexto = 366 dias eu sei que você sabe mas no texto tá errado e pelo conteúdo não pareceu ser de propósito.