sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ah se eu fosse marinheiro...

Tocou em seu chapéu e sentiu sua engomada textura. Hoje seria a última vez que o colocaria e ele precisava estar em plena forma em menos de vinte minutos. Prontamente vestido dirigiu-se a proa do navio e olhou o mar pelo que ele imaginaria ser, sua última vez. Suspirou pesaroso. Mas preferiu deixar essas besteiras sentimentalóides um pouco de lado e procurou ater-se ao que sentiria mais falta naquele navio.
Não queria que a tripulação achasse que ele era um marinheiro bobo de sessenta e quatro anos. Apesar de que era isso mesmo que ele era.
Olhou o céu e irremediavelmente começou a estimar concordatas para dar a seus superiores acerca do tempo ou do que quer que fosse suceder com a viagem. Antes mesmo de terminar seus cálculos metereológicos ele parou, e procurou voltar pro que havia se proposto naquele banquinho solitário.
Talvez fosse mesmo dos portos que ele fosse mais sentir falta. Todo o misticismo envolvendo marinheiros eram de fato reais.
Ele havia conquistado uma senhora diferente em cada um. E havia sido absolutamente maravilhoso com cada uma delas. Jamais se esqueceu da Vilma de Santos e considerara Ânia de Paranaguá o verdadeiro amor da sua vida. Mas, pensando bem, talvez o verdadeiro mesmo tenha sido Glória... Com um leve tapa em sua careca em formação ele esvaziou tais considerações. Procurou lembrar-se com carinho de cada uma delas. Tentou se lembrar do que ele poderia sentir falta acima de todas as coisas, e depois de muito pensar imaginou talvez que fosse, acima dos portos, o branquinho que as ondas faziam ao bater na polpa do navio. Certa vez, um engenheirozinho a passeio em um dos cruzeiros que trabalhou tentou lhe explicar. Usou uma porção de nomes difíceis os quais ele nem mesmo deveria estar entendendo. Nem ligou, continuou a olhar toda aquela espuma branca com uma ternura sem igual. Achou que talvez fosse obra dos dedinhos de Deus. Aquilo que todo mundo procura toda a vida, uma explicação. Nunca precisou de muita explicação pra tanta espuma. Era só aquilo mesmo, constante, linda, pura e absolutamente alheia de qualquer gritaria ou confusão que poderia estar acontecendo no convés acima de sua brancura.
Certa vez havia recebido uma proposta para receber um salário um tanto mais recheado na base naval de Tubarão. O salário seria quase o dobro. Pois ele nem mesmo hesitou. Era quase trinta anos mais moço e tinha uma convicção quase que obstinada de que sua vida era aquele enorme mar. E olhando as ondas e toda aquela maresia lembrou-se desconexamente de Paloma. A morena de Búzios. Ah, ela sim. Por Paloma ele poderia aterrar-se. Mas, não valia a pena. Se o dobro de seu salário não o havia fixado não seria uma mocinha de dezoito anos que o iria. Mas é certo que Paloma tinha olhos azuis da cor daquele mar que ele era tão fascinado. Talvez fosse uma troca justa, os olhos azuis de Paloma no lugar daquela imensidão... Nem mesmo terminou a sentença em sua cabeça. Não valeria a pena.
Nem mesmo um colega, nem mesmo um capitão conhecera tão bem aquela proa como ele. Ninguém. E agora, a Marinha Mercante havia cordialmente enviado-lhe uma carta dizendo serem desnecessários seus serviços e oferecendo-lhe uma gorda aposentadoria. Que insulto! Como se as coisas funcionassem assim. Não lhe interessava essa aposentadoriazinha. A começar, onde ele iria? Abdicara de uma família, amigos de infância estavam soltos pelo mundo e sua chance de construir um lar já estavam por água abaixo. Água, riu, irônico. Paloma, Vilma, Ânia... todas estavam vinte anos mais velhas e certamente vinte vezes menos fogosas e graciosas. O que lhe restara?
Pensou em investir todo seu dinheiro e viver como marinheiro-honoris. Até que descobriu que tal posto jamais existiu e que era apenas um cargo ficcional do livro que sua mãe lia.
Mas pra quê pensar em tanta aflição quando ainda se tinha uma longa tarde para se olhar espumas brancas e lembrar-se de tudo que era bonito e valia a pena? Com um súbito cansaço preferiu voltar a sua cabine para um cochilo, em que em seus sonhos tudo aquilo que o cercava, sua vida como a conhecera, permanecia ali para sempre. Em seu sonho suas ladys de porto permaneciam jovens e vívidas. Seu sonho mais distante era só tudo que sua vida havia sido. E envolto em alva espuma, ele abriu os olhos por uma última vez, constatou que preferia viver sonhando. Sendo assim, voltou a dormir. Para sempre.