quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Se eu soubesse...

Observei de longe algumas crianças. De alguma forma me pareciam entrosadas, interagiam entre si através de bonecos. Eram crianças com bonecos, cada qual com sua distinta característica sendo fortemente enfatizada através de gestos ou falas que davam vida àqueles seres inanimados.
O barulho não dava brecha em momento algum e por mais que aqueles bonecos parecessem interagir, soava muito mais como uma conversa entre o criado e sua criatura. Por estar um tanto distante, não pude ouvir com riqueza de detalhes o que se passava naquela roda, mas me lembro de ter escutado as palavras “atenção” e “certeza” muito mais de uma vez. A princípio apenas uma das crianças mantinha sua voz mais baixa, ponderando muito o que falar e abrindo espaço para que qualquer um soterrasse sua voz. Era acanhada, mas me parecia muito forte, como se tudo que fizesse à sua boneca fosse muitíssimo importante e cheio de razões.
Ela tentou interagir com as outras crianças, mas todas elas pareciam muito ocupadas, discutindo com suas próprias criações, que não parecia haver tempo para prestar atenção no que o outro dizia, por mais que esta outra criança chamasse seu nome. Até porque, quem chamava não parecia lá muito interessado em ouvir qualquer palavra senão as que saíssem de sua boca.
Continuei observando e apurei meus ouvidos a fim de entender o que a criança mais próxima dizia. Não obtive muito sucesso com a formação completa das palavras, mas tive certeza pelo seu semblante de que aquela criança estava perdida e até mesmo confusa. Não da forma padrão, mas daquela forma que só fui capaz de perceber por ter uma sensibilidade apurada e bem treinada. Decidi focar toda a minha atenção e bloquear qualquer estímulo que me impedisse de prestar atenção ao que aquela jovem criatura berrava vorazmente. Seus braços se mexiam freneticamente e seu rosto estava vermelho em ira. Ouvi-a gritar fortemente o nome das outras crianças olhando em seus olhos, mas as outras crianças estavam ocupadas e precisavam manter diálogo com seus respectivos bonecos e com pessoas as quais não davam a menor atenção. Seu rosto agora estava perdendo a cor e sua boca estava começando a afrouxar, de longe pude ver que havia pegado seu boneco e posto no colo e logo depois abraçado muito forte. O vermelho tomou conta do pálido novamente e dessa vez sua ira havia sido substituída por um aparente forte sentimento de culpa, agora lágrimas escorriam por suas bochechas lisas.
Não muito longe, havia outra criança. Como não havia reparado nela antes? Talvez por ser a única que não gesticulava ou gritava. Parecia esconder algo, parecia esconder muita coisa. Tinha um olhar pesado e sua pouca idade era quase substituída por um olhar quase que severo de tão firme. A doçura estava na forma que tocava em seu boneco, com a ponta dos dedos. Sussurrava um mantra inaudível e nem que todos se calassem seria capaz de ouvir da distância que me encontrava. Era um pedido de desculpas e eu percebi haver uma espécie de arrependimento na forma com que aquela criança acariciava seu boneco. Por vezes a vi levantar os olhos e voltá-los para as outras pessoas da roda, mas quando outra fazia o mesmo, ela se voltava à criatura. Sabia que demoraria muito tempo ali, logo, resolvi observar uma outra.
Me parecia tão confusa quanto aquela outra, mas ao contrário da voracidade com que a outra gritava, essa permanecia impassível e por mais que seu rosto denotasse lágrimas a caminho, sua mão era firme como uma pedra, a mesma mão que escondia seu rosto numa tentativa de mostrar firmeza. Estava certa que ao contrário da anterior, essa certamente mudaria o rumo da discussão logo que a primeira lágrima teimasse em cair, seria o fim de sua muralha.
Certa de que estava certa em minhas percepções, resolvi observar uma última criança que tinha acabado de levantar e colocar-se no centro da roda. Seu rosto era neutro quando se levantou. Ao sentar, fechou os olhos com veemência e logo que abriu, baixou os ombros rapidamente como se acabasse de receber todo o peso do mundo. Seu olhar era triste e ela parecia querer absorver tudo que estava ao seu redor. A vi ponderar sua voz ao gritar com ódio e tatear com carinho derramando lágrimas incessantes. Fiz menção de levantar e tive vontade de tirá-la daquele círculo de fogo e lamúrias, mas fui segurada por uma mão que empurrou meus ombros de volta a cadeira. Olhei quem havia feito tamanho disparate e, logo que percebi, sentei derrotada. Sabia que não podia interferir.
A criança parecia estar sofrendo e pedia atenção das outras, mas as outras pareciam bradar com sua boneca ou com seus próprios bonecos. Cada vez que ouvia seu nome, a do centro olhava com esperança, mas quando percebia ser para outro fim, baixava seus olhos e uma torrente de lágrimas caía.
Respirei fundo e percebi alguma delas se calando, como se fosse uma nova peste todos os outros olharam com aspereza para aquela subversiva. A que permanecia no centro mantinha seus olhos fechados e aparente distração com seus devaneios. Por conta de tamanha surpresa as outras crianças calaram-se também e diante daquele novo som ensurdecedor ajeitaram-se em suas posições, envergonhados com tamanha exposição e franqueza na falta de sons.
Agora quem havia fechado os olhos era eu. Transportei-me àquele momento, e ao abrir os olhos estava no centro do círculo e meus lábios mexiam incontroladamente palavras de tristeza, ódio, mágoa, mas principalmente palavras de amor. Era um grito desesperado, que somente agora, muito mais velha havia conseguido entender. Eram palavras desesperadas, saindo de alguém que não via sentido no que dizia e morria de medo de como seu sentimento tomava conta de suas ações e até mesmo de sua própria oratória. Percebi que agora os que me rodeavam prestavam atenção verdadeira àquilo que eu falava, e era a primeira vez também que prestava atenção na importância do silêncio deles. Depois do que me pareceu uma eternidade de verbetes, calei-me e esperei algum tipo de resposta ou ação para todos os questionamentos que havia lançado, todas as ofensas que havia profanado, todos os erros que havia cometido apenas verbalizando minhas próprias mentiras e confusões. Quando fechei a boca que me dei conta do mal que estava fazendo expondo todas as minhas questões e bombardeando terceiros com besteiras e complicações desnecessárias. Mas é claro que não sabia disso.
Dentro daquele corpo juvenil olhei ao meu redor esperando reações, e sem que nem eu mesma pudesse me dar conta, estava sendo envolta por braços, abraços e um montante de carinhos e palavras bonitas, que não pude fazer mais nada senão chorar. E chorei, senti o calor em meu rosto e ouvi o que não esperava ouvir.
Ainda com os olhos fechados, saí daquela atmosfera tão conhecida e familiar e voltei à minha cadeira de observação e distância, voltei também à maturidade e alguns anos de experiência. Logo que abri meus olhos, senti uma mão pesada em minha coxa e outra em meus ombros. Mesmo com algumas rugas era claro a ternura com que os que me acompanhavam naquela observação olhavam a si mesmos naquela roda. Palavras não eram necessárias. Havíamos aprendido a nos ouvir, havia demorado um bocado e muita coisa passou pra que descobríssemos o quanto o silêncio do outro é rico de insuficiências e não de segredos. Não havia segredos, havia identidades e gostosas verdades cheias de carinho. Era gostoso permanecer ali, sabendo que estava segura de olhar pro que um dia havia sido e ver quem havia me tornado. Era interessante ver o quanto eu guardava e o quanto era pesado o que carregava dentro de mim impelida de demonstrar. Morria de medo, como era bobinha.
A imagem a nossa frente foi se desfazendo aos poucos e só quando ela sumiu por completo nos olhamos em confidência. Todos ali sabiam o que havia acontecido e por tudo que havíamos passado, e aquilo fazia daquele silêncio tão especial. Era tão cheio de palavras que proferi-las era desnecessário. Era bonito, completo.
Eu queria ter descoberto tudo isso antes. Mas talvez não tivesse sido tão divertido todo o caminho, e com certeza não teria aprendido tanto.
Aqueles que me rodeavam eram filhos desses alicerces tortuosos e desse caminho cheio de obstáculos, eram tão cheio de cicatrizes quanto eu, cicatrizes as quais não se abririam jamais, haviam sido curadas. E tudo estava bem.

3 comentários:

Samory Santos disse...

Quando olhei pela primeira vez pensei "Caramba, Victória fez mais um texto super-monumental para quem tiver coragem o ler...". Tomei coragem em lê-lo, não me arrependi um segundo sequer. Gostei do tema por sinal!

Anônimo disse...

Li duas vezes, isso nunca acontece...

Lays disse...

ai, eu quero ter um filho!
haha ;*